19 de julho de 2010

Ulisses e as sereias na sociedade do mercado de trabalho



No conceito de indivíduo, o episódio de Ulisses e as sereias ilustra as relações de autopreservação e auto-sacrifício como constitutiva do indivíduo e de seu ego. Nela, Ulisses pretende ouvir o canto irresistível das sereias, que enlouquece os homens a ponto de eles se jogarem ao mar. Então, ordena a seus comandados que tapem os ouvidos com cera e o amarrem ao mastro.

Tomado pelo desejo ao ouvir o canto, ele grita desesperadamente para que o desamarrem, mas seus companheiros não podem escutá-lo. Ulisses sacrifica sua natureza instintiva, mutilando-a, ao mesmo tempo que mutila de certo modo os seus comandados. O ego forma-se e preserva-se, dessa maneira, como uma renúncia a si mesmo, como um auto-sacrifício.

A denominação das forças naturais implica uma dominação entre os homens e, ao mesmo tempo, o domínio de cada indivíduo sobre sua natureza pulsional. Dessa maneira, já está inscrito na gênese do indivíduo e do ego o paradoxo da razão instrumental. E se sua finalidade é preservar o indivíduo, através de um cálculo de eficácia entre meios e fins que chega a se realizar por um sacrifício do indivíduo e por uma constante repressão de seus desejos.

Portanto, para desenvolver o conceito de indivíduo é necessário retroceder até a origem grega e encontrar em Ulisses, por assim dizer, o primeiro indivíduo. Seus antepassados, os heróis trágicos, já prenunciavam seu nascimento ao aliar a autopreservação ao auto-sacrificio. Não eram ainda indivíduos, pois se viam sempre derrotados na luta contra os costumes e a comunidade, vale dizer, contra os deuses.

Ulisses faz da autopreservação, por meio do auto-sacrificio, um método de escapar a esse destino, afirmando sua identidade a cada momento e acima da coletividade ou das forças divinas. Esse método é sua astúcia. Mas, ao ser astucioso, o protagonista da Odisséia já não parece ser um herói. Além disso, sua esperteza tem um preço: estar constantemente cego a respeito do antagonismo entre ego e natureza. O processo de civilização, que de certa forma se repete na evolução de cada indivíduo, desde a infância até a idade adulta, liga-se ao crescimento do ego. Esse crescimento nada mais é do que a sublimação forçada das funções de dominação associadas à origem do ego. Pois muitos indivíduos vêem na submissão e na adaptação mimética a garantia de sobrevivência.


Na sociedade do mercado de trabalho


Se todo comportamento é motivado e toda aprendizagem envolve recompensa, nada poderia ser mais justo e de fácil assimilação se cada esforço também fosse recompensado, a dar viabilidade a Lei do efeito e do exercício. Assim, igual a Ulisses, nos mutilamos com as exigências do mercado e, por horas, recebemos algo em troca, é que através da adaptação mimética garantiríamos a sobrevivência.

Na caixa de conflito, a força de um impulso é medida pela oposição de impulsos. Um rato de laboratório é mantido em uma sala separada por um corredor eletrificado que se une a outra sala com um pedaço de queijo. Aí consiste o conflito do rato: ficar e evitar a dor, mas se abster do prazer do queijo; ou ignorar o perigo e a dor do choque inevitável submetendo-se ao indesejado para somente assim obter a “recompensa” desejada.

Esse é o cheque-mate do mercado de trabalho imposto a nós. Esta é a mecânica de forças invisíveis que nos faz aceitar e se comportar de acordo com as exigências de mercado, nunca faltando lhes como mão de obra. Semelhante ao rato de laboratório, assim todos nós somos obrigados, querendo ou não, a se submeter às exigências do trabalho (o indesejado) para que através delas possamos ser recompensados com o poder aquisitivo da troca de mercado. Auto-sacrifício em prol da autopreservação à lá Ulisses. No entanto, as pessoas que a muito já estão envolvidas nesse processo cotidiano, ao fazerem esse sacrifício em favor da sobrevivência, idêntico ao herói grego que passará a ser indivíduo, também ficaram cegas para a compreensão deste processo.


Ricardo Magno

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