7 de julho de 2010

O Anjo Justiceiro


Sem o menor escrúpulo, como se fosse uma visagem, ele o deixou cair. Sem o menor remorso, com a alma ainda trêmula, depois foi fumar um cigarro ao vento na manhã cinzenta em que nada parecia ter acontecido. Fumaça se misturava com ar. Pneuma e carbono davam vida ao tirá-la.

De vez em quando um trovão soava mais como um grito na consciência da alma do infinitamente inumano. Eles lhe atemorizavam! Seus nervos não estavam preparados. Em meio a um turbilhão de vozes inauditas, uma, somente uma podia ser ouvida. E era a que lhe consolava: “Nunca estamos realmente preparados para fazer algo. Um dia, simplesmente criamos coragem e fazemos.” A partir desta frase, ele havia feito como se tivesse feito muitas vezes. Sendo assim, o estado de ânimo logo atingiu o seu corpo e a apreensão transformou-se em plena realização da tranqüilidade, pois logo chegou à conclusão de que as leis morais não lhe bastavam, visto que a catarse já havia passado.
Agora isto era um fato! Repetiu várias vezes pra si mesmo: “O deixei morrer, o deixei morrer, o deixei morrer.” Saber disso era o suficiente! Ver o corpo dilacerado entres as rochas lhe dava paz. Esta foi a primeira vez que se sentiu verdadeiramente livre em toda a sua existência. Dali em diante era o livre-arbítrio o senhor do seu corpo. Então pôde entender que não poderia ser diferente e que tudo aquilo era mais previsível do que a gravidade. Portanto, como um anjo justiceiro, sentado na parte morta do precipício junto a uma árvore sem vida de raízes expostas quase a cair, ele era a única visão do que restará do dia.

A noite surgia com um desejo louco de tornar tudo escuro. Mais depressa do que antes, agora o céu estava todo cintilante em meio à mistura do carbono com o ar. Ainda lutando contra si, ele tentava harmoniosamente digerir os fatos. Os mastigava e ruminava à medida que o sabor se tornava mais amargo, ele se sentia cada vez mais consumido como a quem se devora o prato predileto - o que se consome passava a consumi-lo. Um sentimento mais forte do que quem o sente, bem e mal intrínseco, essa era a nova mistura de líquidos.

Uma crise lhe tomava a cabeça como se cada idéia lhe amaldiçoasse; atacado, por todos os lados, qualquer interpretação causava dor. Dor, dor e lágrimas! E começou dignamente a chorar como os justos. Não um choro de fraqueza, compaixão ou arrependimento. Chorava como se através das lágrimas fosse a única forma de se libertar do veneno piedade. Era um choro de mudança, sinal de nova fase. Desprendido do antigo, sentia que poderia melhor bater as asas. E elas estavam loucas, sedentas para voar.

“Não existe perdão para o que não pode ser perdoado. Porque quem come da carne se torna um pouco dela.”

Esta era a frase que impregnava as paredes de sua mente. Um sopro, um vento, um vento e um sopro... Calmamente a noite seguia o seu curso. O curso da vida que não pára de viver, que morre em partes para que o todo se mantenha vivo. Para sobreviver, foi necessário permitir que um pouco de maldade penetrasse o coração e neste exato momento era esta, a pífia maldade que lhe fazia sofrer à medida que lhe alimentava. A seguir deste instante, passou a oferecer a sua alma para o novo sentimento, estranho, incomum, porém belo que brotava dentro de si. Era ele o seu novo senhor, fonte e guia.
De olhos vermelhos, ele ainda permanecia o mesmo. Não roubava, não mentia e nem matava. Mas se preciso fosse, roubava , mentia e matava... Assim obtendo a evolução das evoluções. Transcendeu ao bem e ao mal, ao certo e ao errado, fez carreira com sua própria história, dançou sua mais bela e triste música e começou a ouvir a voz que nunca havia de ter deixado de escutar: a voz de seu próprio coração. Romperam-se as leis como se rompem as virgens.

Sem querer se tornar uma presa fácil, aderiu a um pouco de perversidade porque somente agora estava ciente de que há mal que só o bem pode liquidar, mas há outros males que só um mal pior e maior é capaz de destruir.

Cada vida implica na tentativa divina de alcançar a perfeição. E agora pensava ele consigo: “Acho que deus falhou novamente comigo. Mas se há algo que nunca pedirei é perdão por ser quem sou. Pois não tenho culpa de ser assim.”.

Arrependido, ele? Nunca! Só os medíocres se arrependem do que fazem, e ele preferia carregar o peso da dor pelo resto da vida consigo a ver sua vida e seus sonhos serem devorados por um golpe traiçoeiro.

Agora no inferno, ele estava impressionado de como foi capaz de matar aquela pessoa. Pela milésima vez a lei mais sublime de deus havia sido violada:

“Dane-se! Me subestimou. Entre mim e ele que morra o unilateral.”

Pouco a pouco os cigarros iam lhe brisando até não saber mais o que era a neblina do enxofre ou fumaça de cigarro. Tudo se parecia como uma coisa só, somente aquele corpo se mantinha intruso na sua realidade. Como uma prostituta sem compaixão, mais uma lei de deus havia sido rompida.

As palavras se perdiam no ar. Um anjo tinha decaído do paraíso e acordado para a vida: a própria existência. E quando nada disso mais lhe incomodava ele já pensava em novas travessuras... Um vento, um sopro e um ar, os anjos que aqui estão nunca mais desejam voltar.

Agora ele sabia que tudo o que deus não queria que fizéssemos, por natureza, ele já havia nos impossibilitado. Mas o que os homens não queriam, aí se tratava de uma questão de controle social... E buscou viver em paz, de pazes consigo mesmo e com a sua própria natureza.



Ricardo Magno

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